TL;DR
- Os mitos de origem africanos são diversos, apresentando deuses criadores supremos (como Olodumare dos Iorubás, Amma dos Dogons) que frequentemente se tornam distantes após a criação.
- Muitas histórias envolvem os primeiros ancestrais ou heróis culturais (como Oduduwa dos Iorubás, Unkulunkulu dos Zulus) que estabelecem a ordem social, a realeza e as práticas culturais.
- Motivos comuns incluem a emergência das águas primordiais, juncos ou um submundo, muitas vezes através de uma árvore em forma de escada ou uma corrente do céu, simbolizando uma conexão perdida entre o divino e os reinos humanos.
- Os animais desempenham papéis centrais como mensageiros, co-criadores ou irmãos primordiais dos humanos, refletindo uma visão de mundo onde a humanidade e a natureza estão profundamente interconectadas.
- Os mitos frequentemente explicam a origem da diversidade humana (cor da pele, línguas), a morte (geralmente devido a um erro ou tabu quebrado) e os costumes sociais, servindo como cartas para valores culturais e legitimando estruturas sociais.
Introdução#
Os mitos de origem em toda a África são ricos, diversos e profundamente entrelaçados na visão de mundo de cada cultura. Essas histórias de criação frequentemente apresentam divindades supremas, ancestrais místicos ou primeiros seres que trazem o mundo e a humanidade à existência. Muitos são preservados através da tradição oral, narrativas épicas e tradições religiosas indígenas. A seguir, exploramos mitos de origem de várias regiões do continente – África Ocidental, África Central, Chifre da África, África Austral e Norte da África – destacando fundadores ou progenitores mitológicos chave no início dos tempos. Citaremos extensivamente mitos orais registrados e narrativas tradicionais, e discutiremos como esses mitos são compreendidos dentro de suas culturas. Semelhanças e diferenças emergem na cosmologia, no papel de ancestrais divinos ou semi-divinos, e nas maneiras como diferentes povos explicam as origens do mundo e de si mesmos.
Mitos de Origem da África Ocidental#
A África Ocidental possui uma tapeçaria de mitos de criação, frequentemente envolvendo um deus supremo do céu e divindades subordinadas ou ancestrais heroicos que moldam o mundo. Dois exemplos influentes vêm dos Iorubás da Nigéria e dos Dogons do Mali.
Iorubá: A Descida de Oduduwa e a Criação da Terra#
Na cosmologia iorubá, Olodumare (também chamado de Olorun) é o ser supremo que inicialmente detém todo o poder da criação. No entanto, é o orixá Obatalá e, em outras versões, Oduduwa, que realizam a tarefa de formar a terra e os seres humanos. De acordo com um conhecido mito de criação iorubá preservado nas tradições orais de Ifá, o mundo era originalmente um pântano aquoso abaixo do céu. Oduduwa (em algumas narrativas, Obatalá) foi enviado do céu por Olodumare para criar terra firme. Uma narrativa relata como “Olorun, o deus do céu, baixou uma grande corrente dos céus para as águas antigas. Por essa corrente desceu Oduduwa, filho de Olorun” carregando um punhado de terra, uma galinha de cinco dedos e uma **noz de palma. Oduduwa espalhou a terra sobre as águas e soltou a galinha para arranhar e espalhá-la, “até que formou a primeira terra seca. No centro deste novo mundo, Oduduwa criou o magnífico reino de Ifé” – Ile-Ife sendo considerado o berço sagrado dos iorubás. Ele plantou a noz de palma, que instantaneamente cresceu em uma grande árvore com dezesseis ramos, simbolizando os dezesseis clãs ou reinos iorubás originais fundados pelos descendentes de Oduduwa.
Oduduwa, assim, torna-se tanto uma figura criadora quanto o progenitor do povo iorubá. A história oral e as tradições de corte consideram Oduduwa o primeiro rei divino dos iorubás. O mito sustenta que “Oduduwa foi o primeiro governante do reino e o pai de todos os iorubás. Com o tempo, ele coroou seus 16 filhos e netos e os enviou para estabelecer seus próprios grandes reinos iorubás”. Esses primeiros governantes, como descendentes diretos do deus do céu, eram reis divinos na crença iorubá. O mito de criação, portanto, não apenas explica como a terra e os humanos foram formados de um pântano primevo, mas também santifica a realeza e a linhagem iorubá, ligando os ancestrais reais aos deuses no alvorecer dos tempos. Dentro da cultura iorubá, esta história é entendida tanto como uma narrativa cosmológica quanto como uma carta para a legitimidade política – uma razão pela qual o Oni (rei) de Ifé ainda é reverenciado como líder espiritual, sendo descendente de Oduduwa.
Notavelmente, algumas variantes iorubás enfatizam o papel de Obatalá em moldar os primeiros corpos humanos a partir do barro. Diz-se que Obatalá moldou figuras humanas nas quais Olodumare então soprou vida. Um conto iorubá até explica a origem das deformidades relatando que Obatalá ficou bêbado com vinho de palma enquanto moldava os humanos, resultando em formas imperfeitas; ao recobrar a sobriedade, ele jurou proteger aqueles com deformidades como expiação. Em todas as versões, os iorubás veem a criação como um ato cooperativo entre o Deus Supremo e o orixá. Os mitos são preservados em versos de adivinhação de Ifá e canções de louvor, recitados por sacerdotes e griots, reforçando os valores culturais de ordem divina (orun) influenciando o reino terrestre (aye).
Dogon: Amma, o Ovo Cósmico e o Nommo#
O povo Dogon do Mali possui uma cosmogonia elaborada e filosoficamente complexa, registrada famosamente a partir de anciãos Dogon na década de 1930 pelo etnógrafo Marcel Griaule. No mito Dogon, o criador é Amma, o deus supremo do céu. No início dos tempos, Amma criou a Terra e imediatamente se uniu a ela – uma união que foi imperfeita e deu origem à desordem. O mito, conforme relatado por sábios Dogon, sustenta que “O Céu, que também é considerado pelos Dogon como o criador, é chamado Amma. No início dos tempos, Amma … criou a Terra e imediatamente se uniu a ela”. Deste primeiro ato surgiu o conflito: a força criativa de Amma se dividiu em dois, dando origem a Ogo, uma figura trapaceira que encarna o caos. Ogo se rebelou contra o criador, descendo à Terra em uma arca pela Via Láctea e trazendo devastação ao mundo nascente.
Para restaurar a ordem, Amma criou então Nommo, um ser primordial de ordem e água. Nommo foi um dos pares de gêmeos descendentes de Amma. Na verdade, Amma criou oito espíritos ancestrais, organizados como quatro pares de gêmeos, que são frequentemente chamados coletivamente de Nommo ou espíritos Nommo. Essas oito figuras são “os ancestrais dos seres humanos” no pensamento Dogon. Amma enviou Nommo e os outros espíritos ancestrais à Terra em uma segunda arca, que foi baixada do céu por uma corrente de cobre – um paralelo marcante à ideia iorubá de uma corrente do céu. Ao descer, Nommo estabeleceu a ordem, ensinando à humanidade as artes da civilização. A arte e o ritual Dogon frequentemente fazem referência a esses eventos; por exemplo, certas cestas trançadas simbolizam a arca, e a natureza geminada da criação é refletida em uma ênfase na dualidade (masculino/feminino, céu/terra) na cultura Dogon.
Os mitos Dogon também contêm um elemento cósmico: a noção de um ovo cósmico que Amma moldou e chocou, liberando o sol, a lua, as estrelas e toda a criação. Em um relato, Amma lançou pelotas de argila na escuridão para formar as estrelas, e modelou o sol e a lua como potes de argila – “Ele criou as estrelas jogando pelotas de terra no espaço. Ele criou o sol e a lua modelando duas tigelas de cerâmica branca”. Os próprios humanos, segundo o mito Dogon, foram moldados pelo Nommo. A mitologia Dogon é densa em simbolismo – por exemplo, os Nommo são frequentemente descritos como figuras anfíbias, semelhantes a serpentes, e alguns pesquisadores (controversamente) ligaram o conhecimento estelar Dogon sobre Sirius a essa narrativa antiga. Dentro da sociedade Dogon, o mito de criação sustenta estruturas sociais importantes: explica por que seu sacerdote-chefe (o hogon) é simbolicamente casado com o deus da terra, por que a cosmogonia Dogon enfatiza o equilíbrio da geminação (papéis masculinos e femininos), e por que suas famosas danças mascaradas e esculturas codificam referências a seres primordiais como Nommo. É entendido não como uma história literal, mas como uma verdade sagrada que explica a ordem do universo e a origem dos próprios Dogon em uma era distante quando ancestrais divinos pousaram na terra.
Mitos de Origem da África Central (Bantu)#
A África Central abriga centenas de povos falantes de línguas Bantu, cujas línguas e culturas compartilham alguns elementos temáticos nos mitos. Muitas histórias de origem Bantu apresentam um deus supremo do céu que cria o mundo e frequentemente se retira, bem como um primeiro homem ou primeiro ancestral que traz cultura ao povo. Dois mitos ilustrativos vêm do povo Boshongo (Bushongo) da região do rio Congo e do povo Fang (Fan) da área de Camarões/Gabão.
Boshongo (Bushongo): Bumba o Deus Criador#
Os Boshongo, um grupo Bantu no que hoje é a República Democrática do Congo, contam uma dramática história de criação apresentando uma divindade criadora solitária, Bumba (também chamado Mbombo). No início, havia apenas escuridão e água, e o grande deus Bumba habitando neste vazio. Bumba foi afligido por uma terrível dor de estômago. Em um surto de agonia, ele vomitou o sol, que trouxe luz e secou parte da água para criar terra. Ainda sofrendo, Bumba vomitou a lua e as estrelas, trazendo luz noturna, e então vários animais: um leopardo, um crocodilo, uma tartaruga e outros emergiram de seus sucessivos vômitos. Finalmente, Bumba regurgitou os primeiros humanos. Como uma versão coloca: “Um dia Bumba, com dor de estômago, vomitou o sol… Ainda com dor, Bumba vomitou a lua, as estrelas, e então alguns animais: o leopardo, o crocodilo e a tartaruga… Depois de um tempo ele ficou doente novamente, e finalmente vomitou alguns homens, dos quais apenas um deles chamado Yoko Lima era branco como Bumba”. Este mito vívido retrata a criação como um processo quase corporal do criador. Notavelmente, ele até usa o detalhe de que um dos primeiros homens era branco como o deus, refletindo uma tentativa de explicar as origens de diferentes povos.
O mito Boshongo de Bumba é frequentemente citado como um exemplo de criação ex deo (criação a partir da própria substância do corpo do deus) na mitologia africana. Ele enfatiza que todas as coisas vivas – sol, bestas, humanos – compartilham uma origem sagrada comum, tendo vindo diretamente do corpo de Bumba. Dentro da cultura Boshongo, esta história sublinha uma visão do mundo como organicamente unificado e o criador como benevolente (se um tanto inadvertido em seu método). Após a criação, Bumba ensinou os primeiros humanos a caçar e fazer fogo, transmitindo cultura. Então Bumba é dito ter se retirado, muito como um deus ocioso (deus otiosus), deixando a governança do mundo para divindades menores ou espíritos ancestrais. O mito, transmitido oralmente por contadores de histórias, reforça a ideia de que a humanidade é jovem em relação à criação anterior dos animais – de fato, os humanos foram os últimos a serem criados em vez dos primeiros, sugerindo aos Boshongo que as pessoas são apenas uma parte de uma criação mais ampla e devem viver em harmonia com o mundo natural.
Fang (Fan): Nzame e o Problema do Orgulho#
Outro mito Bantu, do povo Fang da África Central, fala de uma tríade divina chamada Nzame. Na cosmologia Fang, Nzame é um deus com três aspectos ou personas (semelhante a uma trindade): Nzame, Mebere e Nkwa. No início, apenas Nzame existia e criou o universo e a terra. Admirando sua criação, Nzame decidiu nomear um governante sobre a terra e primeiro criou três animais arquetípicos (elefante, leopardo, macaco), mas achando-os insuficientes, a tríade divina finalmente modelou um homem à sua própria imagem, nomeando-o Fam (significando “poder”). Fam deveria governar o mundo. No entanto, Fam tornou-se arrogante e deixou de honrar seus criadores, então Nzame desencadeou raios para destruí-lo e tudo o que ele havia feito. Como Fam havia recebido a imortalidade, seu corpo não pôde ser destruído, então Nzame deixou a terra desolada com a forma indestrutível mas sem vida de Fam sobre ela.
Determinado a criar uma humanidade mais obediente, Nzame então recriou o mundo. Ele colocou uma nova camada de terra sobre a antiga (explicando talvez camadas de solo ou fósseis) e fez um novo primeiro homem, Sekume, desta vez mortal. Sekume viu uma árvore cair e criou uma mulher a partir da madeira da árvore; ela era Mbongwe, a primeira mulher. Sekume e Mbongwe povoaram a terra com seus filhos. Neste conto Fang, vemos temas de criação, destruição e recriação, bem como a noção de uma queda da graça através do orgulho – curiosamente paralelando temas nas tradições abraâmicas, embora em um idioma indígena. O mito Fang ensina o valor da humildade diante do Criador e fornece uma razão para por que os humanos são mortais (Sekume foi deliberadamente criado para ser menos arrogante e não imortal, ao contrário do primeiro ser Fam). Ele também explica características naturais (como por que há fósseis ou “terra antiga” sob o solo – dito ser os restos da primeira criação, transformados em carvão). Dentro da cultura Fang, esta história é contada por anciãos para instilar respeito pela autoridade divina e para alertar contra a arrogância. Faz parte de um complexo maior de crenças espirituais Fang que incluem reverência por ancestrais e espíritos da natureza, comum a muitos povos Bantu.
Mitos de Origem do Chifre da África (Cuxíticos)#
No Chifre da África, entre os povos de língua cuxítica como os Oromo e Somali, encontramos narrativas de criação refletindo um tom distintamente monoteísta (mesmo antes da disseminação do Islã e do Cristianismo). O conceito de um único deus criador do céu – frequentemente chamado Waaq (ou Wak/Waaqa) – é central. Esses mitos às vezes envolvem o criador testando os primeiros humanos ou criando-os de maneiras incomuns. Um exemplo do folclore cuxítico na Etiópia é o mito de Wak (Waaq) o Criador entre o povo Oromo.
Oromo (Etiópia): Wak e o Caixão do Primeiro Homem#
De acordo com uma lenda Oromo, Wak (também escrito Waaqa) era o deus supremo que vivia nas nuvens e criou o mundo. Unicamente, a criação da humanidade por Wak envolve um motivo de ressurreição. Como um mito de criação etíope registrado relata: “Wak era o deus criador que vivia nas nuvens… Ele era um benfeitor e não punia. Quando a terra era plana, Wak pediu ao homem para fazer seu próprio caixão, e quando o homem fez isso, Wak o fechou nele e o empurrou para o chão. Por sete anos ele fez chover fogo e as montanhas foram formadas. Então Wak desenterrou o caixão e o homem surgiu, vivo”. Em outras palavras, Wak primeiro fez o homem primordial enterrar-se em um caixão; o fogo mágico de Wak remodelou a terra plana com montanhas, e depois o primeiro homem emergiu novamente. Este episódio dramático pode simbolicamente representar uma transição de um estado inicial criado para o mundo como o conhecemos (com montanhas e terreno), e o renascimento do homem nesse mundo completo.
Após o primeiro homem reemergir, ele estava solitário. Então Wak criou a primeira mulher de uma maneira igualmente maravilhosa: “O homem cansou de viver sozinho, então Wak pegou um pouco de seu sangue, e após quatro dias, o sangue se tornou uma mulher com quem o homem se casou”. Este casal primordial teve muitos filhos – trinta no total. No entanto, o homem se envergonhou de ter tantos descendentes e escondeu metade deles do Criador. Wak sabia dessa decepção e respondeu transformando os 15 filhos escondidos em animais e demônios, deixando apenas os 15 não escondidos como humanos. Este conto Oromo, portanto, não apenas fala do primeiro homem e mulher, mas também fornece uma origem para os animais (eles são literalmente irmãos dos humanos nesta narrativa) e para os espíritos malignos (os “demônios” que vieram dos filhos ocultos).
O mito de Wak reflete a alta consideração dos Oromo por Waaqa como um deus justo, mas não vingativo – Wak não mata os filhos escondidos como punição, mas muda sua forma. Ele também codifica lições morais: esconder a família por vergonha leva à perda; e humanos, animais e até forças sobrenaturais compartilham um parentesco. Dentro da cultura tradicional Oromo (e outros grupos cuxíticos com crenças Waaqitas semelhantes), tais mitos reforçavam a moralidade e a ordem social sugerindo a onisciência de Wak (sabendo que o homem escondeu seus filhos) e sacralizando o mundo natural (os animais são literalmente nossos irmãos e irmãs, merecendo respeito). Embora muitos povos cuxíticos mais tarde tenham adotado o Islã ou o Cristianismo, os antigos mitos sobrevivem na cultura popular e às vezes são sincretizados com novas ideias religiosas (por exemplo, Oromo que se tornaram cristãos podem interpretar Wak como o mesmo que o Deus cristão). Pesquisadores observam que até os Somali, que usam a palavra Eebe ou Waaq para Deus, tinham mitos pré-islâmicos de um deus do céu que controla a chuva e a fertilidade, indicando uma herança cuxítica comum de mitos de criação monoteístas.
Mitos de Origem da África Austral#
Os povos indígenas da África Austral incluem os San (Bosquímanos) com uma cosmologia de caçadores-coletores, e grupos Bantu como os Zulus com chefias mais centralizadas. Suas histórias de origem diferem significativamente: os San enfatizam um criador-trapaceiro e a harmonia com os animais, enquanto o mito Zulu foca em um primeiro ancestral emergindo dos juncos. Ambos, no entanto, têm profundo significado cultural e ainda são referenciados em contextos espirituais ou rituais.
San (Bosquímanos): Kaang Traz a Vida de Sob a Terra#
Os povos San (pejorativamente chamados de “Bosquímanos”) do Kalahari e da região do Cabo têm uma das mitologias mais antigas da humanidade. As histórias de criação San refletem um mundo em que humanos e animais eram uma vez uma comunidade e se comunicavam livremente – um tempo de paraíso que terminou devido à tolice humana. Em um mito de criação San Bushman, diz-se que originalmente as pessoas não viviam na superfície da terra: “Em um tempo, pessoas e animais viviam debaixo da terra com Kaang (Käng), o Grande Mestre e Senhor de Toda a Vida. Neste lugar, pessoas e animais viviam juntos pacificamente. Eles se entendiam. Ninguém jamais precisava de nada e sempre havia luz, embora não houvesse sol”. Kaang, um mestre criador (frequentemente identificado como uma divindade-trapaceira louva-a-deus no folclore San, também chamado ǀKaggen em alguns grupos San), concebeu um plano para trazer suas criações ao mundo da superfície.
Kaang criou uma árvore maravilhosa que estendia seus ramos sobre todo o mundo acima. Na base desta árvore havia um buraco que levava do reino subterrâneo à superfície. “Depois de terminar de mobiliar o mundo como desejava, ele conduziu o primeiro homem pelo buraco. Ele se sentou na borda do buraco e logo a primeira mulher saiu dele. Logo todas as pessoas estavam reunidas ao pé da árvore… Em seguida, Kaang começou a ajudar os animais a subir pelo buraco… Eles continuaram saindo do mundo abaixo até que todos os animais estivessem fora”. Assim, a árvore de Kaang serviu como uma escada do paraíso subterrâneo para a terra, e humanos e animais emergiram juntos no novo mundo.
Antes de partir, Kaang reuniu todas as pessoas e animais e instruiu-os a viverem juntos em harmonia, e crucialmente, ele advertiu os humanos a não fazerem fogo, pois previu que isso levaria a uma catástrofe. Por um tempo, tudo estava bem. Mas quando a noite caiu (algo nunca experimentado no subsolo, já que havia luz perpétua sem sol), os humanos ficaram com medo e frio, pois não tinham pelo e visão noturna como os animais. Esquecendo a advertência de Kaang, as pessoas acenderam um fogo para calor e luz. As chamas súbitas aterrorizavam os animais; em seu medo, as criaturas fugiram “para as cavernas e montanhas”, e a amizade primordial entre humanos e animais foi quebrada. Desde então, dizem os San, as pessoas não podem mais falar com os animais, e um abismo existe entre eles – “o medo substituiu a doce amizade que outrora existiu”.
Os anciãos San tradicionalmente usavam esta história para explicar não apenas a criação dos seres vivos, mas também por que os humanos devem respeitar os animais (porque no início éramos família) e por que há conflito entre eles agora (devido à desobediência humana à ordem divina). O mito também codifica sabedoria ambiental: o fogo, embora útil, marcou a perda da inocência e o início do afastamento da humanidade da natureza. Na compreensão espiritual San, Kaang/ǀKaggen é uma figura paradoxal – às vezes retratado como um trapaceiro que pode mudar de forma (frequentemente em um louva-a-deus ou um antílope elande), e outras vezes como um criador sábio. A arte rupestre San e a narração de histórias frequentemente fazem referência a episódios desses mitos, como o louva-a-deus como criador ou a primeira caça ao elande (o animal amado de Kaggen). A versão citada acima foi registrada de um contador de histórias San e até cita uma crença San de que “não apenas plantas e animais estão vivos, mas também a chuva, o trovão, o vento, a primavera, etc… Dentro está um espírito vivo que não podemos ver” – uma visão de mundo nascida de seu mito de origem de força vital compartilhada. Para os San, a história de criação é uma carta para uma visão de mundo onde cada elemento da natureza é imbuído de espírito e parentesco, e qualquer ação humana disruptiva (como o acendimento daquele primeiro fogo) pode perturbar o equilíbrio.
Zulu: Unkulunkulu – O Primeiro Ancestral dos Juncos#
Os Zulus da África do Sul, um povo Bantu, têm um mito de origem centrado em Unkulunkulu, literalmente “o Grande Grande”, que é tanto o primeiro homem quanto, em certo sentido, uma figura criadora. Na tradição Zulu registrada no século XIX (pelo missionário Henry Callaway, entre outros), diz-se que Unkulunkulu emergiu de um leito de juncos no alvorecer dos tempos. Um relato relata: “Surgiu um homem e uma mulher. O nome de ambos era Unkulunkulu. Eles surgiram de um junco, o junco que está na água. O junco foi feito por Umvelinqangi. Umvelinqangi fez crescer grama e árvores; ele criou todos os animais selvagens, e gado, e caça…”. Aqui Umvelinqangi (significando “Aquele que estava no princípio”) é o criador onipotente que trouxe à tona as plantas, animais e o junco (uhlanga) do qual os primeiros humanos vieram. Curiosamente, esta versão chama tanto o primeiro homem quanto a mulher de “Unkulunkulu”, sugerindo que o conceito se refere ao ancestral original em vez de um indivíduo de gênero único. Em outras narrativas, Unkulunkulu é explicitamente masculino, o primeiro homem, e ele toma uma esposa que juntos se tornam progenitores da humanidade. Os Zulus dizem que Unkulunkulu “se desprendeu de Uthlanga” (o leito de juncos) no início do mundo.
Uma vez que ele emergiu na terra, Unkulunkulu deu nomes a todas as coisas e ensinou os primeiros humanos a sobreviver. Como uma narrativa descreve, Unkulunkulu nomeou os animais, trouxe fogo para as pessoas e as instruiu na arte de cozinhar, caçar e agricultura: “Ele olhou para todas as coisas e disse, ‘Tal e tal é o nome de cada coisa.’ … Ele disse às pessoas como fazer fogo e cozinhar, e disse, ‘… comam carne quando ela tiver sido preparada pelo fogo.’”. Unkulunkulu não é adorado na religião Zulu – na época da história registrada, os Zulus já haviam em grande parte mudado para a adoração de espíritos ancestrais (AmaDlozi) e reconhecimento de um deus do céu, uNkulunkulu (frequentemente identificado com o Deus cristão sob influência missionária). De fato, informantes Zulus nos anos 1800 disseram a pesquisadores que Unkulunkulu “foi o primeiro ser criado; ele nos fez homens e nos deu tudo, mas agora ele se foi”. Eles não oravam para Unkulunkulu; em vez disso, o respeito era dado a espíritos ancestrais mais próximos e ao “Senhor do Céu” (talvez um conceito separado semelhante a um deus do céu). Isso indica que no pensamento Zulu, Unkulunkulu era um progenitor distante – importante como a fonte da humanidade (e da linha real Zulu, em algumas versões), mas não uma divindade ativa na vida diária.
O mito de criação Zulu também inclui temas de emergência (dos juncos) e às vezes um camaleão e um lagarto que foram enviados por Deus com mensagens de imortalidade e morte. Em algumas versões populares, o camaleão foi primeiro enviado pela divindade do céu com uma mensagem de que os humanos viveriam para sempre, mas ele demorou; o lagarto chegou com a mensagem de que os humanos morreriam, que alcançou as pessoas primeiro – assim, a morte entrou no mundo. Este é um motivo difundido no folclore Bantu, embora a variante Zulu frequentemente se concentre mais em Unkulunkulu em si.
Dentro da cultura Zulu, a imagem de vir dos juncos (“Uthlanga” significando fonte/junco) tem um simbolismo poderoso. Conecta-se à ideia de vida emergindo da água e do pântano – um símbolo de fertilidade. A dança dos juncos (umkhosi woMhlanga) na tradição Swazi e Zulu, embora não relacionada na prática, compartilha o simbolismo do junco de renovação e pureza. Reis Zulus na era pré-colonial às vezes traçavam sua linhagem até Unkulunkulu para legitimar seu governo como sancionado divinamente. Interpretações Zulu modernas, especialmente sob a influência do Cristianismo, às vezes fundem Unkulunkulu com o Adão bíblico ou com Deus, mas a tradição mantém Unkulunkulu como o primeiro ancestral. A ênfase do mito no primeiro ancestral em vez de um deus criador reflete um foco cultural Bantu mais amplo na veneração dos ancestrais – é a conexão com os primeiros ancestrais (e através deles, aos dons do criador) que importa na vida religiosa.
Mitos de Origem do Norte da África#
Os mitos indígenas do Norte da África são menos conhecidos do que os de outras regiões, em parte devido à assimilação precoce nas tradições escritas do antigo Mediterrâneo e das culturas islâmicas posteriores. No entanto, as tradições orais berberes (amazigh) e os mitos nilóticos do Vale do Nilo oferecem relatos fascinantes de criação. Estes frequentemente apresentam imagens cósmicas (ovos, separação céu-terra) ou explicações para a diversidade humana. Destacaremos uma perspectiva amazigh (berbere) e uma nilótica.
Amazigh (Berbere): Ovo Cósmico e Deus Supremo#
Os povos amazigh (berberes), espalhados por Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia e além, possuem narrativas míticas que remontam a uma visão de mundo pré-islâmica e pré-cristã. Embora muitas histórias específicas tenham sido perdidas ou sincretizadas ao longo do tempo, os estudiosos notaram certos temas recorrentes no folclore de criação berbere. Uma ideia proeminente é a de um Deus Supremo (às vezes identificado com uma antiga divindade do céu ou até sincretizado com o deus egípcio Amon) que cria o mundo. Segundo uma visão geral de um estudioso do patrimônio amazigh, “Uma história de criação bem conhecida [entre os berberes] gira em torno do personagem do Deus Supremo, às vezes conhecido como ‘Amun’. Amun, segundo as crenças, criou o mundo e todos os seres vivos. Outro relato de criação descreve o cosmos como sendo produzido a partir de um ovo, com o ovo cósmico tendo se separado para gerar os céus e a terra.”
O motivo do ovo cósmico é marcante e ressoa com mitos de criação em outras partes do mundo (incluindo o mito do ovo cósmico dos Dogon, ou a criação hermopolitana egípcia antiga que apresentava um ovo primordial). No contexto berbere, pode-se imaginar uma narrativa onde, no início, havia um ovo ou orbe primordial, que se abriu – o céu se formando de uma parte e a terra da outra. Tal imagem sugere que os amazigh viam o próprio universo como um ser vivo que nasceu.
Outro mito amazigh registrado no folclore kabyle (norte da Argélia) fala da humanidade vivendo originalmente no submundo ou em um espaço fechado, algo semelhante ao mito San de emergir debaixo da terra. Neste conto kabyle, “no início todos os humanos viviam no subsolo. Um homem e uma mulher existiam, mas não percebiam sua diferença de gênero. O casal saiu para a superfície…” (o resto da história descreve como eles eventualmente se descobrem e começam a procriar, povoando assim o mundo).[1] Esta narrativa enfatiza a emergência e uma ignorância idílica da diferença sexual, que, uma vez superada, leva ao início da sociedade.
Também temos referências a uma primeira mulher mitológica amazigh chamada Settūt (ou Setlut), às vezes apelidada de “a Primeira Mãe do Mundo” em lendas orais. Settut é retratada como uma figura poderosa, embora perigosa – uma espécie de feiticeira primordial. Algumas histórias dizem que Settut foi a primeira a pisar na terra, emergindo do submundo; ela criou o sol jogando uma pálpebra de carneiro no fogo[2]. Outros fragmentos sugerem que ela exigia sacrifícios humanos, indicando que ela não era uma mãe benevolente, mas uma criadora aterrorizante. Esta figura pode representar remanescentes de uma deusa-mãe pré-histórica ou figura de bruxa na mitologia berbere, cujas histórias sobreviveram em comunidades montanhosas.
Dentro da cultura amazigh, esses mitos – embora escassamente documentados – são entendidos como alegóricos. A história do Deus Supremo Amun alinha-se com o conhecido culto a um deus do céu entre os antigos berberes (por exemplo, os antigos líbios reverenciavam um deus supremo que os romanos chamavam de Júpiter Ammon). A história do ovo cósmico transmite a crença em um caos primordial dando origem à ordem, um tema também presente nas ideias de criação egípcias e gregas antigas, talvez apontando para influências interculturais no Mediterrâneo. Enquanto isso, os humanos emergentes do subsolo e as façanhas de Settut falam de uma narrativa berbere mais localizada, enfatizando magia, transformação e o início de costumes sociais (como reconhecer o casamento, acabar com o sacrifício humano, etc., nessas histórias). Infelizmente, devido à dominância de religiões importadas e à falta de registros escritos antigos, muito do folclore de criação amazigh é reconstruído a partir de relatos orais dispersos. Hoje, os esforços de revitalização cultural amazigh estão coletando essas histórias para preservar uma perspectiva exclusivamente norte-africana sobre como o mundo começou.
Povos Nilóticos (Vale do Nilo): Criadores de Argila e o Primeiro Gado#
“Povos nilóticos” refere-se a grupos ao longo do Nilo e se estendendo até o Sudão do Sul, Uganda, Quênia e Tanzânia – frequentemente sociedades pastorais com culturas centradas no gado (por exemplo, os Dinka, Nuer, Shilluk, Maasai, etc.). Seus mitos de origem frequentemente envolvem uma divindade suprema do céu e a criação especial de humanos (e gado) a partir de materiais terrestres.
Um exemplo vem dos Shilluk do que hoje é o Sudão do Sul. O mito Shilluk diz que o criador, Juok (ou Jok), viajou pelo mundo modelando humanos a partir de argila de diferentes cores. “Os Shilluks da região do Nilo, por exemplo, contam uma história em que a humanidade é modelada a partir de argila. Em cada região do mundo em que o criador viajou, ele criou humanos a partir dos materiais disponíveis, fazendo alguns brancos, outros vermelhos ou marrons, e os Shilluk negros”. Em outras palavras, quando o deus criador estava na Europa, ele usou terra de cor clara para fazer pessoas brancas; na Ásia, terra avermelhada para pessoas asiáticas; na terra natal dos Shilluk, argila escura rica para os Shilluk (pessoas negras). Após formar esses humanos, o criador “então pegou um pedaço de terra e deu-lhes braços, olhos, etc.” modelando seus corpos parte por parte. Este mito serve para explicar a diversidade humana enquanto afirma o lugar dos Shilluk no centro da criação (já que o criador os fez por último, com cuidado deliberado). Também reflete um sistema de valores: uma versão Shilluk observa que o criador deu os membros primeiro para o trabalho, depois os sentidos, e por último a fala, implicando que na cultura Shilluk a produtividade e o trabalho são valorizados acima de conversas ociosas.
Outro mito nilótico, dos Dinka, envolve o primeiro homem Garang e a primeira mulher Abuk. O Criador (Nhialic) inicialmente os deixou viver perto do céu com apenas um único grão por dia para comer. Quando Abuk tentou plantar grãos extras para ter mais comida, ela acidentalmente irritou o criador (ou em algumas versões o atingiu com sua enxada), fazendo com que Nhialic se retirasse para o alto dos céus e cortasse a corda que conectava o céu e a terra. Isso explica por que Deus está distante agora e por que os humanos devem trabalhar para obter seu alimento (já que a fartura fácil foi perdida). Também introduz a morte – em muitos mitos nilóticos, a retirada do Deus supremo está ligada à origem da morte e do sofrimento.
Os Maasai (Quênia/Tanzânia), que também são um povo nilótico, contam que o criador Enkai (ou Engai) estava uma vez próximo à humanidade e lhes deu gado através de uma ponte mística de gado do céu. Em uma história, Enkai baixou gado para os Maasai do céu ao longo de uma tira de couro. Mas outro grupo de humanos, com ciúmes, cortou a corda, encerrando assim o fluxo de gado do céu. Isso deixou os Maasai com o gado que já havia sido entregue, razão pela qual os Maasai até hoje reverenciam o gado como presentes sagrados e se consideram os guardiões divinamente designados de todo o gado na Terra. Este mito posiciona os Maasai como povo escolhido e fornece uma origem sagrada para seu estilo de vida pastoral.
Comum entre os mitos de origem nilóticos é a ideia de que as primeiras pessoas foram diretamente feitas por Deus (frequentemente de argila ou lama), e que o gado foi criado especialmente ou dado como um legado à humanidade. Nessas culturas pastorais, o gado é vida – tanto que na língua Nuer, a palavra para esterco de vaca é a mesma que a palavra para bênção. Os mitos também frequentemente lidam com a perda do paraíso: uma explicação para por que os humanos não mais caminham com Deus ou por que experimentamos a morte. Para os Shilluk, o próprio ato de criação separa diferentes povos, mas também mostra uma humanidade universal sob um único Deus. Para os Dinka e Maasai, o erro ou malícia humana causou uma ruptura com o divino, razão pela qual agora as pessoas devem realizar rituais (cerimônias de chuva, etc.) para se comunicar com um Deus do céu que outrora estava próximo. Essas histórias ainda são contadas ao redor de fogueiras à noite e em cerimônias importantes, reforçando normas sociais (por exemplo, respeitar a comida alocada, não irritar Deus através da ganância, valorizar o gado, honrar o trabalho dado às suas mãos). Mesmo com a disseminação do cristianismo e do islamismo nas regiões nilóticas, muitas dessas comunidades incorporam seus mitos de criação identificando o criador no mito com o Deus das escrituras, preservando assim as antigas narrativas em um novo quadro teológico.
Análise Comparativa: Temas Entre Regiões#
Apesar da imensa diversidade cultural da África, certos temas comuns e contrastes intrigantes emergem desses mitos de origem: • Criador Supremo e Deus do Céu Distante: Em quase todas as regiões, há um conceito de um criador supremo, frequentemente associado ao céu: Olorun/Olodumare para os iorubás, Amma para os Dogon, Wak para os Oromo, Umvelinqangi para os Zulu, Amun ou outro deus supremo para os Amazigh, Nhialic para os povos nilóticos. Esta divindade inicia a criação, mas frequentemente se torna remota depois. Isso reflete uma noção africana generalizada de um deus otiosus, um Deus supremo que se retira e deixa os assuntos do mundo para deuses menores ou ancestrais. Por exemplo, Olodumare dos iorubás raramente é adorado diretamente; os iorubás se concentram em intermediários (Orishas) – da mesma forma, os Zulu disseram que Unkulunkulu “deixou de ser” ativo e que eles em vez disso honram os ancestrais. A ideia pode derivar da experiência de que, enquanto um Criador fez o mundo, a vida cotidiana (chuva, fertilidade, saúde) parece depender mais de espíritos menores ou dos próprios ancestrais, que assim se tornam o foco dos rituais. • Primeiros Ancestrais e Heróis Culturais: Muitos mitos introduzem um primeiro ancestral que é frequentemente portador de cultura. Oduduwa para os iorubás não só cria a terra, mas também estabelece a realeza e tece linhagens iorubás. Unkulunkulu para os Zulu nomeia os animais e instrui os humanos a fazer fogo e ferramentas. Nos mitos nilóticos, os primeiros ancestrais às vezes recebem o primeiro gado ou as primeiras sementes de Deus, ensinando seus descendentes a pastorear e cultivar. Esses fundadores míticos fazem a ponte entre os reinos divino e humano: eles são criados por deuses (ou são semideuses), mas também muito “humanos” no sentido de que formam famílias, governam comunidades ou até cometem erros que afetam toda a humanidade (como na história Dinka de Garang e Abuk rompendo o elo com o céu). Em culturas sem escrita antiga, essas figuras lendárias servem como uma história mítica, validando estruturas sociais. Por exemplo, a organização de uma aldeia Dogon e o papel do sacerdote hogon são legitimados por sua descendência dos ensinamentos do Nommo; um oba (rei) iorubá legitima sua autoridade traçando linhagem até Oduduwa. • Geografia Cósmica – Água, Juncos e Subterrâneo: Um motivo marcante é as águas primordiais ou pântano de onde a vida emerge. O mito iorubá começa com apenas água abaixo até que Obatala cria a terra. Os mitos Zulu e de vários outros Bantu falam de juncos em um leito pantanoso (Uthlanga) como o berço da primeira vida. Em histórias da África Ocidental e Central, às vezes o criador se move sobre ou acima das águas (como no mito Boshongo com Bumba acima da água, ou os Efik da Nigéria cujo criador envia os primeiros humanos do céu para a água). Enquanto isso, a emergência do subterrâneo está presente em mitos do Sul (San, Kabyle) e até mesmo em alguns mitos do Norte da África. Este motivo sugere um tempo em que o mundo da superfície ainda não estava pronto para habitação até que algum evento (a árvore de Kaang, ou simplesmente o momento certo) permitisse que pessoas e animais surgissem. O uso de uma árvore no mito San como uma escada, e uma corrente ou corda nos mitos iorubá, Dogon e muitos outros mitos africanos, destaca a ideia de uma conexão entre o céu e a terra no início – uma conexão posteriormente perdida ou rompida. Muitas culturas têm um conto de um elo rompido: a corda de cobre dos Dogon e as histórias Zulu/Nuer/Maasai de uma corda para o céu que foi cortada são exemplos. Isso frequentemente simboliza a separação atual da humanidade da comunhão direta com o divino. • Papel dos Animais: Os animais são personagens centrais nos mitos de origem africanos. Na história Boshongo, os animais são criados até antes dos humanos, e o homem é apenas mais uma criatura trazida à tona. Na história San, humanos e animais são originalmente uma comunidade e só mais tarde separados. Em outros lugares, animais específicos atuam como mensageiros ou participantes: o mito iorubá tem uma galinha que espalha a terra; muitos mitos Bantu apresentam um camaleão e um lagarto na história da mortalidade; o mito Dogon dos Nommo é frequentemente descrito como semelhante a peixes, enfatizando o simbolismo animal aquático. Isso reflete como as cosmologias africanas geralmente não separam nitidamente humanos da natureza – todos os seres vivos fazem parte da mesma criação. Como resultado, muitas culturas tradicionais africanas têm tabus e totens relacionados a animais (por exemplo, clãs que descendem de um certo ancestral animal ou proibição de prejudicar uma espécie considerada parente). Os mitos fornecem a justificativa: se, por exemplo, os animais são literalmente nossos irmãos (como no conto Oromo onde crianças escondidas se tornaram animais), então tratá-los com respeito é um dever sagrado. • Origem das Diferenças (Etnias, Línguas, Morte): Vários mitos tentam explicar as origens das diferenças humanas – como cor da pele, línguas, costumes. Vimos como a história Shilluk atribui cor à argila usada. Outro conto da África Ocidental (da região dos Camarões) não detalhado acima diz que o primeiro casal assou crianças de argila em um fogo, escondendo-as quando Deus se aproximou; aqueles deixados mais próximos do fogo por muito tempo ficaram com a pele mais escura, aqueles mal assados eram claros, etc., dando uma explicação mítica das raças. Embora cientificamente imprecisos, esses contos carregam uma mensagem implícita de que todos os humanos compartilham a mesma origem (argila, a intenção de um criador) e apenas circunstâncias superficiais levaram a diferenças – frequentemente acompanhadas de uma moral de que todas as pessoas são, em última análise, iguais (como uma história conclui, os africanos ocidentais dizem que isso mostra que todos os homens são criados iguais, apesar da cor). A origem da morte é outro tema comum: em muitos mitos africanos, a morte não é uma característica original da vida, mas surge devido a um erro ou escolha. Por exemplo, alguns mitos Bantu culpam o camaleão preguiçoso (que atrasou a trazer a notícia da vida eterna) e o lagarto apressado (que declarou a morte) – transmitindo que a morte foi acidental ou nasceu de um comando quebrado, em vez de inevitável. Isso frequentemente serve para consolar (implicando que a morte não era o plano inicial do criador) e para alertar (deve-se obedecer às instruções divinas, ou enfrentar consequências terríveis). • Inundações e Renovação: Alguns mitos africanos incluem narrativas de inundações ou ciclos de destruição-renovação. O mito iorubá acima menciona uma grande inundação enviada pela deusa do mar Olokun para punir a usurpação de seu reino por Obatala – quase reminiscentes de mitos de inundação globalmente. A história Fang tem explicitamente uma destruição da primeira criação por um raio e uma renovação com uma segunda criação. Estes indicam um reconhecimento de que a criação pode não ter sido um evento único; houve épocas ou eras – uma era dos deuses, uma era de ancestrais míticos, e a era atual dos humanos. Eles também espelham experiências reais (inundações, desastres) que as sociedades tiveram que explicar em termos de vontade divina ou ciclos cósmicos. • Transmissão e Contexto Cultural: A forma como esses mitos são entendidos em suas culturas pode variar – alguns são narrativas sagradas ensinadas em contextos rituais, outros são contos populares contados para instrução moral. Entre os Dogon, por exemplo, a cosmogonia é conhecimento esotérico ensinado durante iniciações (como a cerimônia Sigui a cada 60 anos) e ligado aos seus símbolos únicos relacionados à astronomia. Em contraste, uma avó Zulu pode casualmente dizer às crianças “viemos de um junco” sem que isso faça parte de uma prática religiosa formal, já que a veneração dos ancestrais e não a criação é o foco da espiritualidade Zulu. A influência islâmica e cristã também foi absorvida: muitas pessoas podem contar essas histórias como a “crença de nossos antepassados” enquanto pessoalmente aderem a uma religião mundial. No entanto, os mitos permanecem uma chave para a identidade cultural. Eles são frequentemente referenciados em provérbios, nomes tradicionais e artes. Por exemplo, a cosmologia de nomes iorubá inclui nomes como Olufẹ́mi (“Deus me ama”), refletindo sua crença de criação em um criador amoroso que enviou Oduduwa. As danças mascaradas Dogon retratam o Nommo e seres primordiais. Poemas de louvor Zulu referem-se ao “Caniço dos Ancestrais”. Esses mitos perduram como DNA cultural.
Ao comparar entre regiões, vemos diferenças também: histórias da África Ocidental (por exemplo, iorubá, Dogon) frequentemente incorporam um panteão de deuses com papéis complexos; em contraste, muitos mitos do Sul e do Norte/África Oriental tendem ao monoteísmo ou dualismo (um único criador, ou um criador vs. trapaceiro). Isso pode ser devido à difusão histórica de ideias – por exemplo, o conceito Waaq do Chifre da África provavelmente precede o Islã, mas pode ter sido reforçado por contatos iniciais com religiões abraâmicas. A presença do ovo cósmico nos contos Dogon e Amazigh poderia sugerir trocas trans-saarianas antigas ou desenvolvimento paralelo. E enquanto algumas culturas (Dogon, San) enfatizam uma visão mais filosófica ou animista – por exemplo, os Dogon veem as estrelas como o corpo de Amma, os San veem espíritos em elementos naturais – outras como os Zulu e Nilotes têm uma narrativa baseada em pedigree focando em linhagem e instruções pragmáticas para a vida (por exemplo, como cultivar milho como na história Zulu do primeiro homem ensinando a primeira mulher a moer grãos).
Conclusão#
Os mitos de origem africanos, desde a costa iorubá até o Saara, desde o Kalahari até o Nilo, fornecem insights profundos sobre como diferentes povos conceitualizam o início do mundo e seu lugar nele. Essas histórias não são meras fantasias; são vasos de conhecimento cultural. Através de linguagem simbólica e personagens memoráveis – seja um deus vomitando o sol, uma louva-a-deus liderando pessoas para fora da terra, ou um homem emergindo de um junco – as comunidades africanas codificaram sua compreensão de verdades fundamentais: a unidade da vida, a ordem moral do universo, a santidade dos ancestrais e os mistérios da morte e da diversidade.
Cada mito carrega a marca do ambiente e da história do povo que o contou. Os Dogon, vivendo pelas estrelas nos penhascos do Mali, imaginaram um drama celestial de ordem e caos. Os pastores nilóticos, sempre cuidando do gado sob o céu amplo, viam Deus moldando humanos a partir de argila e baixando vacas do céu. Os Bantu que habitam florestas imaginaram a criação em termos terrenos e viscerais (a doença de um deus trazendo vida) e alertaram contra a arrogância. Os San, vivendo próximos à natureza, imaginaram um tempo de perfeita unidade com os animais e advertiram como uma única transgressão poderia alterar o mundo. Os contos berberes, herdeiros das areias do Saara e das noites de oásis, falavam na linguagem de ovos cósmicos e reinos ocultos, refletindo tanto tendências austeras quanto místicas.
Ao estudar esses mitos de origem, estudiosos e leitores ganham apreço pela profundidade filosófica e riqueza poética do patrimônio oral da África. Dentro de seu contexto acadêmico, essas narrativas são vistas como fontes primárias de cosmologia indígena: por exemplo, o relato de criação iorubá citado acima foi registrado a partir da tradição oral e versos de adivinhação Ifa por sacerdotes iorubás; o mito Dogon foi famoso transcrito por Marcel Griaule do ancião cego Ogotemmêli em 1947, representando a escritura oral Dogon; a história San foi coletada de informantes /Xam no século XIX (notavelmente por Wilhelm Bleek e Lucy Lloyd) e posteriormente recontada por estudiosos como A. Lewis-Fahs & D. Spoerl, preservando a voz dos anciãos San; os relatos Zulu foram documentados por missionários-etnógrafos como Henry Callaway na década de 1860, que entrevistaram tradicionalistas Zulu sobre Unkulunkulu. Essas fontes nos mostram as palavras e ideias autênticas dos contadores de histórias orais, embora traduzidas para o inglês.
Entre regiões, os mitos exibem tanto cor local única quanto uma busca humana compartilhada para responder: “De onde viemos?” No pensamento africano, a resposta é entregue com poder imaginativo: viemos de deuses e ancestrais que moldaram argila ou vomitaram estrelas; subimos árvores e descemos correntes do céu; irrompemos de juncos e caixões; éramos uma vez um com todas as criaturas vivas. Tais mitos continuam a ser honrados, contados e reinterpretados. Eles permanecem como um elo vivo com a sabedoria ancestral da África e um testemunho da contribuição do continente para a imaginação humana global sobre a criação.
FAQ#
Q 1. Quais são alguns temas comuns nos mitos de criação africanos? A. Temas comuns incluem um deus criador supremo que se torna distante, a emergência da humanidade da água ou da terra, o papel central dos animais, um paraíso primordial perdido e mitos que explicam a origem da morte, costumes sociais e diversidade humana.
Q 2. Quem são algumas figuras criadoras chave na mitologia africana? A. Figuras chave incluem Oduduwa (iorubá), que criou a primeira terra; Bumba (Boshongo), que vomitou o mundo para a existência; Kaang (San), que trouxe a vida do subsolo; e Unkulunkulu (Zulu), o primeiro ancestral que emergiu dos juncos.
Q 3. Como esses mitos explicam a relação entre humanos e animais? A. Muitos mitos retratam humanos e animais como originalmente vivendo em harmonia, como uma comunidade, ou até mesmo como irmãos. A separação entre eles é frequentemente atribuída a uma transgressão humana, reforçando a necessidade de respeito e reconhecendo uma origem compartilhada.
Q 4. Esses mitos têm base em eventos históricos? A. Esses mitos não são histórias literais, mas são entendidos como narrativas sagradas ou simbólicas que codificam valores culturais, legitimam estruturas sociais (como a realeza) e explicam a ordem fundamental do universo e o lugar da humanidade dentro dele.
Q 5. Como essas tradições orais são preservadas? A. Elas são preservadas através de contação de histórias orais, narrativas épicas, canções de louvor e performances rituais (como iniciações e danças mascaradas). Anciãos e contadores de histórias especializados (como griots) são frequentemente os guardiões desse conhecimento, passando-o de geração em geração.
Fontes#
Os trechos das fontes primárias são extraídos de tradições orais registradas e compilações acadêmicas de mitos africanos, incluindo:
- Iorubá: Tradição oral e versos de adivinhação Ifa registrados por sacerdotes e estudiosos iorubás.
- Dogon: Testemunho oral do ancião Ogotemmêli, transcrito por Marcel Griaule nas décadas de 1930-40.
- Boshongo (Bushongo): Tradições orais registradas da região do rio Congo.
- Oromo: Folclore cushítico e mitos de criação da Etiópia.
- San (Bosquímanos): Narrativas orais /Xam coletadas por Wilhelm Bleek e Lucy Lloyd no século XIX, recontadas por estudiosos como A. Lewis-Fahs & D. Spoerl.
- Zulu: Tradições orais documentadas por missionários-etnógrafos como Henry Callaway de informantes Zulu na década de 1860.
- Amazigh (Berbere): Reconstruído a partir do folclore oral Kabyle e análises modernas da mitologia berbere.
- Shilluk & Dinka (Nilotic): Tradições orais do Vale do Nilo, registradas por etnógrafos estudando culturas sudanesas e outras nilóticas.
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Fragmento do Mito de Criação Kabyle – Um resumo derivado do folclore oral Kabyle (berbere), conforme mencionado no artigo da TV Tropes sobre Mitologia Kabyle e outras fontes de folclore. ↩︎
Lenda de Settut – Conforme discutido em fóruns modernos amazigh e compilações de folclore, por exemplo, blogs culturais e mídias sociais dedicadas à mitologia berbere (a história de Settut não é de uma fonte escrita clássica, mas de lendas orais no Magrebe, recentemente popularizada por entusiastas culturais amazigh). ↩︎